Sinto que o fim se aproxima. Não sei bem o fim de que, mas este sempre insiste em chegar. E fim não significa que acabou, é passagem; transição. Terminar algo é apenas estabelecer um novo lugar para partir. E términos são fabulosos, basta observar, como agora mesmo o fiz, o crepúsculo. O qual, com uma beleza renascentista, cobre o firmamento para encerar o dia e anunciar o principado da Lua; que, exuberante, aponta para entre os mares das Gerais dissipando a chuva. Com esta sensação que me vem o desejo de declarar meu testamento. Neste hiato entre um tranquilizante crepúsculo e o amanhecer esclarecedor que declaro cousas que gostaria de dividir com os herdeiros (de Gaia) e aprendizes (assim como eu) que por mim passaram e passam. Aos antepassados de sangue faço minha eterna reverência por saber que agora (neste lugar) sou o único motivo de sua existência e seu legado. Aos antepassados do saber e querência dobro meus joelhos, resignado, por revelarem o quão frágil é o conhecimento e quão cômoda é a ignorância. Assim, repleto de universo, esvazio a mim mesmo em enxurrada de todas as vidas que vivi, merecida ou imerecidamente, pra quem tiver a coragem de ouvir e sentir. Divido meu Deus! Digo meu não por propriedade, mas por singularidade de feições. Ele se parece com muitos outros únicos Deuses que habitam os seres e os templos. Ora crucificado, ora contemplativo, ora severo... Porém, invariavelmente, Feliz!!! Deixo um Deus sem as amarras das religiões, não por sem melhor, mas é o que consigo, por hora, entregar pra quem quer que seja. E como reflexo desta parte divina, partilho meus amores. Ah! Como amo e como amei nesta equilibrada fração de século. Ainda quero mais, se permitido me for. Amei e amo de maneiras que não imaginava possíveis. Misturei muitos elementos no caldeirão do meu peito numa alquimia que gerou a vastidão de possibilidades; limitada pelo compasso do chronus e ameaça de feridas. Amei as descobertas por entre as cobertas. As paisagens incrustadas na memória de perfeitos relevos e vales por onde passearam minhas curiosas mãos. Amei sorrisos espontâneos que dei ao invocar os nomes que me percorrem e em mim deixaram seu significado. Amei coisas, sabores, lugares, símbolos, cheiros, letras, canções e ruídos. Tudo o que seja capaz de trazer à tona a lembrança de todos os amores que escolhi e os que me escolheram. Entrego ainda minhas retinas e com elas o registro dos mirantes por que passei. Carrego nelas o belo e o insano que me apontaram ladeira acima. Privilegiadas, guardam contornos de brancas orquídeas, a vastidão do sol rasgando as águas do Atlântico, cores que não sei nomear, sorrisos e lágrimas que me provocaram prazer e dores indescritíveis. A vista da poeira contra o brilho de um raio de sol, ou o mesmo sol abrindo espaço por entre as nuvens de chuva e projetando o arco de muitas cores no horizonte. As luzes que oscilam no espaço. O verde... Não é minha cor predileta, mas é a que me trás as melhores sensações. Os olhos que mirei... tantos que trouxeram colorido pro cotidiano e outros que desfiguraram o dia. Mosaicos de gente, fúria da natureza, relâmpagos, telas, palcos, lingeries, corredeira de rio e cascata, curvas de estrada de terra, ipês amarelos, Letras que me trouxeram saberes e emoções: aprendizado. Meus sons não são só dos pássaros que soa demasiado breve. Os mais agudos estão nas cordas de um certo violino; os mais seguros na mistura das vozes da cozinha, os de maior profundidade estão na infantil risada do mais velho e no vocativo que o mais novo usava. O mais determinante é um inconfundível: Oi! E ainda temos as canções e todas as vozes que me invadem para construir e desconstruir histórias. Ouso nomear os moços da esquina, os dos festivais e os dos idiomas distantes. Poetas de tamanha intensidade que moram nos tímpanos que vibram ao seu som. Chuva na janela, orquestras, a maré baixa, estalo de lenha, os passos de meu pai, cachoeira, apito de bule, aplausos, o grito alvo e negro, os trilhos, cuco e carrilhão, o hino, trovões, o silêncio. Dos temperos que experimentei partilho os que meus lábios provaram por eles mesmos e os que suguei de outros. Não são os sabores que me nutriram os que mais oferto. Oferto a presença dos olhares que dividiram tantos desses sabores comigo; em especial o calor e entusiasmo do café. Oferto as prolongadas conversas que organizaram minhas ideias e desajustaram meus sentimentos. Há outros gostos que preciso dividir. Alguns angustiantes das derrotas e fracassos que amargaram; alguns dos dias em que a conquista e vitória resplandeciam. Os aromas! Ah! Os aromas!!! São tantos os cheiros que me remetem a momentos de paraíso que, de fato, não há como escrevê-los. A torrefação, terra molhada, alho e sal na panela, alfazema, vick vaporupi (nem sei se é assim que escreve), folha de eucalipto, água fresca e suor, chá de erva cidreira, gelol, álcool com arnica, óleo de máquina de costura, chimarrão, “mixirica”, pinho sol, dama da noite na rua, vela acesa, suor e cio. O toque! A navegação dos meus dedos é mais efetiva por entre melenas. Essas são suas melhores lembranças. Contornos: de cadeiras, flores, faces, xícaras, livros, talheres, quadris, botões, peças do xadrez, cálices, rolhas, mãos e pés, canetas, janelas, Têm ainda a firmeza da madeira da mesa de jantar, a maciez do papel que hora escrevo, a textura do pêssego, o visgo das rosas, areia nos pés, meia nova, o calor das mãos de minha mãe (tranquilizantes), a brisa da montanha, o sopro da voz no ouvido, unhas na nuca, lençol limpo. Os abraços... Quantos bons, demorados, confortáveis, trêmulos, suados, afáveis, saudosos e sofridos... abraços. Uns de partida, outros de reencontro. Deixo os beijos que distribuí e os que, orgulhoso, trago na face de tantas amizades e de tantas vontades. Sou testamenteiro de lembranças. Memórias estas que possam, apaziguar seus dias e inspirar sua próprias experimentações pra produzir novas memórias. É o que deixo. O que vivo é o que coleciono. E minhas coleções: divido!
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