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Qual a índole do seu filho?

    Nada mais incoerente e revoltante do que ouvir de alguém sobre seu(s) filhos:
    “- Nossa, como eles são bonzinhos, você deu sorte! O meu é terrível, vale por três!”
O comentário aparentemente elogioso encobre todo um conjunto de crenças que é um dos pilares (talvez o mais podre) de sustentação da nossa sociedade: as pessoas têm índole, já nascem “boazinhas” ou “terríveis” e nada se pode fazer contra a “natureza”. Os termos estão entre aspas (recurso brega, mas eficiente) pois são verdades populares construídas pela comodidade de uma raça que resiste a assumir suas responsabilidades. Embora haja uma série de componentes inatos nos homens, determinar uma índole é tirar completamente do processo de EDUCAÇÃO seu poder formador, ou seja, não adianta gastar tempo, dedicação, atenção com a criança que é terrível, pois não haverá resultado. Pelo crontrário, a terribilidade da criança pode já ser o resultado de uma educação negligente.
     É preciso esclarecer essa situação, tirar a máscara que esconde suas intenções mais profundas: o que poderia parecer um elogio às crianças bem educadas acaba gerando sempre um desconforto, uma vontade quase incontrolável de xingar, pois nesse apontamento não há nenhum mérito dos pais, foi a “natureza” quem lhes deu o privilégio de apenas conduzir três abençoados anjinhos que obedecem e agem educadamente, sem parecerem crianças sofridas, tímidas, reprimidas. Por outro lado, a mesma afirmação esconde um desabafo de quem sofre em relação ao processo de convivência com o próprio filho, o “terrível”, que “nem Cristo pode!”, como que amaldiçoando a própria sorte, o martírio que vive e sabe que continuará vivendo enquanto tiver que aguentar a peste que não obedece, é respondão, malcriado, não para quieto. Nem sombra de assumir algum comprometimento com o que se fez da criança, é o discurso que o exime da responsabilidade de educar sua criança.
     É certo que nascemos com vários constituintes que determinam como seremos, temos em potencial uma série de comportamentos, habilidades, limitações, predisposições que se manifestarão, ao longo do nosso desenvolvimento, conforme forem sendo estimuladas ou permitidas. Há crianças com nível de atividade maior que outras mesmo, há crianças com maior potencial de agressividade, de competitividade, de sensibilidade perante situações emocionais tensas, com maior ou menor grau de inteligência em cada uma de suas manifestações (lógico-dedutiva, linguística, cinética, musical, etc.). Chamar esse conjunto inato de ÍNDOLE é tão medieval quanto crer que a terra é plana e o centro do universo.
     A persistência nessa crença simplória e aparentemente inofensiva produz o grande mal da civilização: a falta de compromisso! Se lembrarmos que a tal sociedade não passa do conjunto de seres humanos que a constitui, e que estes um dia nasceram e foram criados, educados, e que uma parcela considerável (não falo maioria por não haver dado disponível, mas o empirismo me autoriza a defender que o número é significativo) dos pais que educam seus filhos usa a desculpa da ÍNDOLE para se eximir da responsabilidade de conduzir um processo educativo eficiente, chegamos logicamente a uma verdade clara e evidente: temos um bando de gente malcriada pelas ruas constituindo a SOCIEDADE.
     O fenômeno é agravado com a popularização de outro conceito irmão da ÍNDOLE, no sentido de contribuinte à degringolação da raça humana: KARMA. Desculpar os problemas vividos com os filhos com o argumento de que se está pagando por uma vida passada, ou algo do gênero é um habeas corpusfantástico para toda e qualquer negligência no processo educativo.
     Para deixar claro: não questiono a fundo o conceito de KARMA e ÍNDOLE, mas discuto aqui como eles são usados como ferramentas de comodismo (do mais pernicioso possível) na dinâmica da sociedade. Evidentemente o verdadeiro sentido do Karma deve ser outro que não o criticado no parágrafo anterior, mas o “verdadeiro sentido” só é compartilhado por uma restrita camada de pessoas dedicadas e estudiosas do assunto. Também não culpo a crença que propaga essa verdade, não se está produzindo um artigo antirreligioso, mas contra a postura negligente que prepondera no processo educativo, apoiando-se onde puder encontrar argumento para justificar os resultados terríveis nas crianças.
Há ainda um agravante nesse processo de deseducação, ou de formação de crianças terríveis. Não bastasse a falta de interferência consciente e dedicada no estabelecimento de limites, é muito comum que se ache “lindo” o filho terrível, que cada malcriação seja “bonitinha”, que a insubordinação e teimosia sejam sinais de força, esperteza, ou seja, quando a mãe diz que seu filho é terrível, além de desabafar seu martírio (tornando sua vida mais digna de atenção que a dos outros) ainda se vangloria, indiretamente. A “crítica” ao próprio filho é falsa, esconde um orgulho da esperteza maliciosa, da rebeldia, em contraposição à criança boazinha, no fundo boba, fraca, sonsa.
     Digo a minha verdade: filhos são bonzinhos aos olhos da sociedade não porque SÃO bem educados, mas porque ESTÃO SENDO bem educados diariamente. Os pais dessas crianças não têm tempo para si mesmos, seus projetos pessoais são deixados para um futuro possível, normalmente diminuem o padrão de vida, pois percebem e decidem que a presença deles é mais importante que dar presentes para as crianças, que proporcionar um bom futuro aos pequenos não é sinal de acumular muita grana, mas de estar muito tempo junto com eles, sabem que limitar, punir, determinar limites é uma tarefa que lhes compete e é fundamental. O tempo desaparece na vida de um casal comprometido (que criará crianças boazinhas), não há espaço para o “recanto do guerreiro”, para o “futebol com os amigos”, não sobra dinheiro para o “merecido banho de loja”, fica difícil ir à Disney, ou trocar de carro a cada três anos.
     A escolha deve ser assumir a responsabilidade por criar as crianças, olhar para elas individualmente e inter-relacionadamente, ponderando e agindo conforme as demandas surgem e dialogando para esclarecer a melhor forma de conduzir cada interferência nelas. Cada criança é diferente da outra(como o são todos os seres humanos) e demanda processos educativos distinto. Gasta-se (ou “perde-se”, na ótica de quem não abre mão de si) muito tempo para eles, seja com eles, seja sobre eles (acaba sendo o assunto mais contemplado), o que não significa que não se viva uma relação de casal e que cada qual tenha perdido sua individualidade, essas vivências ocorrem ainda no curto espaço que sobra.
     É uma existência, por esses tempos, tão restrita que chega a causar claustrofobia, suficiente para alguns surtos de angústia, vontade de jogar tudo para o alto. Então vem uma mãe toda bela e montada nos dizer que o seu pequerrucho vale por três, que é sorte, que toda a dedicação e comprometimento, a pesada RESPONSABILIDADE que assumida é privilégio divino. É ou não é para esfregar uma lâmpada quebrada no rosta da criatura!
     Não é possível pensar uma sociedade melhor, projetar alguma transformação relevante e decisiva a partir de seres criados sob a égide de conceitos obtusos como ÍNDOLE e KARMA, tomados da forma com o são por parte do senso comum. Não dá para se crer em qualquer mudança protagonizada por um meio constituído por indivíduos que não assumem sua responsabilidade formadora. O mesmo pensamento abrange questões políticas, como culpar “os políticos” (dessa forma genérica, sem a menor propriedade de sobre quem se está falando) pelo fracasso da gestão pública, ignorando que estes são cidadãos também, formados nas mesmas condições que se está perpetuando no processo educativo negligente. A sociedade começa em casa, com nossos filhos!

 
  Adriano Dias
Adriano Dias é um dos idealizadores do projeto SEMEMA, articulista e mergulhador no "mar de signos" em busca de formas curiosas e relevantes de cultura. Também leciona literatura, gramática e técnicas de redação como profissão.

Artigo publicado em 19/03/2015


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